quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A periferia de São Paulo pode explodir a qualquer momento

Por André Hermann, Bárbara Mengardo, Felipe Larsen, Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Luka Amorim, Marcelo Salles, Marcos Zibordi, Otávio Nagoya, Renato Pompeu, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos


Ferréz tem 33 anos, é escritor, comerciante e autêntico representante dos sentimentos e das lutas da imensa população que vive na periferia de São Paulo. Ficou conhecido porque expressa com realismo a dureza das relações entre povo e Estado, entre pobres e ricos, entre as precárias condições de vida nas favelas e a repressão policial.

Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos ele conta como o processo de criminalização da população pobre da periferia tem contribuído para acumular ódio e faz um alerta: “Vai chegar um dia que uma agressão a um menino ou a uma menina vai virar uma revolução em São Paulo inteira”. Fala também de sua vida e de seu amor pela literatura. Fiquem com Ferréz.

Hamilton Octávio de Souza - Fale um pouco da sua vida, onde nasceu, estudou, o que faz hoje.
Ferréz - Meu nome é Ferréz, eu não uso meu nome de batismo por que eu não acredito no batismo, não acredito na Igreja Católica. Prefiro um pseudônimo, por que é uma coisa que eu inventei também, como a minha carreira. Eu sou vendedor ambulante, eu só vivo com coisa debaixo do braço para cima e para baixo para vender às editoras, sou datilógrafo também, por que escrevo e trabalho com muita coisa para poder ter o básico, então vivo de muita coisa, trabalho de muita coisa. A minha infância foi normal como a de todo moleque de favela, tá ligado? Só não soltava tanto pipa porque meu pai não deixava.

Tatiana Merlino - Nasceu onde?
Nasci no Valo Velho, na verdade eu nasci num lugar chamado Cantinho do Céu, que é antes um pouco, ali no Jardim Capelinha, na zona sul de São Paulo. Nasci ali, fui para o Valo Velho, mas eu sempre falo do Valo Velho porque pra mim o começo da minha infância foi no Valo Velho, na casa de aluguel do meu pai. Depois eu mudei para o Capão Redondo, na verdade Valo Velho é área do Capão também, para o Jardim Comercial e estou lá até hoje.

Tatiana Merlino - E os teus pais faziam o que?
Meu pai é motorista de ônibus aposentado, depois foi motorista da Sabesp, se aposentou e agora cuida de um bar. Minha mãe é doméstica, trabalha em casa de família e até hoje é a mesma coisa, ela faz uns bicos e tal, tem um bazarzinho, mas vive de bico também.

Tatiana Merlino - E você é filho único?
Sou o irmão mais velho de uma família de três, tenho uma irmã que é enfermeira e um irmão de 18 anos.

Renato Pompeu - Que idade você tem?
Tenho 33. Estou pronto para ser crucificado.

Marco Zibordi - Então começa a falar da escola, que é a primeira crucificação, para você que não acredita em igreja, a primeira é a escola...
É. Na escola eu tive bastante dificuldade, porque eu não prestava atenção na aula, mas ao mesmo tempo eu sabia a lição. Então eu tirava boas notas, prestava atenção no professor, e até hoje os professores perguntam como é que pode esse cara nunca prestou atenção, e esse cara sabia as matérias. Eu achava que 20 minutos do que o professor falava eu já entendia, o resto era discurso meio no vazio. Eu repeti a primeira série do primeiro ano no Euclides da Cunha, eu não gostava do ensino, não gostava da escola, não odiava ir para a escola, eu só ia para conversar mesmo e eu achava que não tinha
nada a ver o que eu estava aprendendo. Eu não aprendi porcentagem na escola, entendeu? Não me ensinaram porcentagem e no comércio que eu abri eu precisava saber porcentagem. A escola me ensinou pouco, mas eu tive muitas pessoas boas na escola, muitos professores bons, que eram professores que não davam lição nem de matemática e nem de português, mas davam lição de vida. Essas pessoas fizeram a diferença.

Marco Zibordi - A literatura não te ligava em nada na escola?
Não, eu lembro bem da passagem que eu descobri da quarta para a quinta série, que tinha os druidas. Eu gostava muito de história e aí eu perguntava para o professor, eu lembro muito de ter chegado e perguntado para o professor o que eram os druidas e o professor não sabia e aí ele falava: eu não estou dando aula sobre isso. Eu fazia fanzine, já criava uns logos com o fanzine e aí eu fui estudar a cultura dos druidas para poder puxar para o fanzine os logos e tal, aí eu tinha uns interesses que na escola não tinha; eu gostava de quadrinhos e na escola não tinha. Eu lembro bem na oitava série de ter um livro de português e ter lá um texto do Arnaldo Antunes e aí eu falei: puta finalmente na oitava série eu vou ver um cara que eu gosto dentro de um livro de português. Por que no resto não tinha nada.

Júlio Delmanto - E agora você está nos livros de português...
É parece que agora sou eu, pelo menos o moleque olha e diz tem alguém aqui.

Lúcia Rodrigues - Você acha que a escola está distante da realidade?
Eu acho que a escola perdeu o foco total de qualquer senso de realidade. Eu acho que a escola e a realidade não têm mais nada a ver e eu acho que uma geração inteira está errando de ir para a escola e os professores serem educados do jeito que são também. Porque os professores também estão ferrados.

Tatiana Merlino - Quando e como você começou a gostar de literatura?
Meu, não tem uma data assim. Tipo, eu não sei assim um dia eu acordei e falei agora eu gosto de literatura, sabe? Mas eu lia sempre quadrinhos e gostava de Robert E. Howard que é o autor do Conan e aí eu buscava saber sobre o cara, e a biografia dos autores sempre me interessou mais e então eu comecei a buscar saber mais sobre os caras. Eu sempre tive um ensino paralelo ao da escola, então se eu gostava de Conan eu lia Conan no serviço e ia para escola, tinha que ler Aluísio de Azevedo ou tinha que ler Carlos Drummond de Andrade lá, mas o Carlos Drummond de Andrade lá não me interessava...

Lúcia Rodrigues – O que acha dos rappers tipo GOG, Racionais, Facção Central?
O Gog, o Racionais, o Facção Central, o Consciência Humana, são a minha escola também, eu não existiria e toda uma legião de caras que existe hoje que gosta de literatura e rap, não existiria se não fosse eles. O rap, pra mim, junto com os caras é uma injeção, tá ligado? Que na verdade é pra quem tá com dor, quando eu vou em faculdade fazer palestra tem um monte de gente que reclama, mas eu acho violento Facção Central, Racionais... Por que não é para eles, eles não precisam ouvir aquilo, eles não tão na cadeia, eles não tão usando droga, então não precisa. É bem claro pra mim, as letras de rap no Brasil são as melhores letras do mundo, não existe um tipo de letra de rap no mundo igual as que existem no Brasil. Um rap que o cara fala: No rio em que Jesus andou, o homem navegou e matou pela cor. Não existe em nenhum lugar no mundo um verso como o homem nasceu com defeito de fabricação, invés do coração uma granada de mão dentro do peito. É o tipo de letra que os caras fazem.

Lúcia Rodrigues - O que você acha dos partidos políticos, hoje?
Eu não tenho mais pensamento político nenhum. Eu acho que absteve, sabe quando você está cansado de sexo que vira abstinente? Ainda bem que você não sabe. Você não é nem um sexo de o outro, você é um ser morfológico que não tem sexo? É a mesma coisa eu na política, eu já trabalhei para deputado, já trabalhei para vereador e eu me senti muito mal depois, quando os caras são eleitos, porque eu vejo que eu não consegui alcançar os objetivos dos caras da quebrada que tava com nós.

Lúcia Rodrigues - Para que partido especificamente?
Era para o PT. Eu sempre trabalhei de graça para o PT, muitos anos. Sempre vendi broche, sempre andei com bandeira na rua, sempre foi de graça, eu nunca ganhei um real, mas teve algumas pessoas do PT com quem eu trabalhei mesmo recebendo e que depois me decepcionou, decepcionou meus amigos e hoje eu tenho algumas pessoas dentro da política que eu valorizaria assim, mas que eu acho que tem diálogo, pelo menos comigo assim como amigo. O Eduardo Suplicy, que é meu amigo assim pessoal,também independente de política, é o único que é eleito para 8 anos e tá lá ainda, volta eu ligo para ele, ele vai, os moleques da quebrada ligam, ele vai. É o único presente, na verdade o Suplicy não é político, ele é um ser humano.

Tatiana Merlino - Mas e o PT em si? O que você se decepcionou com o PT?
Ah! Eu não sei, eu votei num partido que prometeu outras coisas, entendeu? Não prometeu escândalo, não prometeu virar as costas na hora em um julgamento, não prometeu... O PT virou outra coisa, não é o que eu acreditava não. Não estou falando que tinha que ser revolucionário, que tinha que mudar tudo, que todo mundo sair de vermelho, mas era uma coisa que eu acreditava como moleque de favela que a favela ia mudar, entendeu? Mas eu tive que esperar o PCC chegar para mudar a favela, não foi o PT... A sigla foi outra, não foi o PT que mudou a favela, então nessas partes não é um governo autoritário ruim, mas também não é o governo dos sonhos que eu lutei, que eu vendi show, que o Góis morreu na estrada tentando lutar pelo partido, que eu vi muito amigo meu morrendo lutando pelo PT e ficando velho pelo PT, não era isso que a gente queria no poder e eu não tô falando só do Lula, tô falando de todo o partido.

Lúcia Rodrigues - O PCC mudou a favela de que maneira?
De toda a maneira possível que você pensa.

Lúcia Rodrigues - Positivamente?
Depende da visão. Tem gente que pensa que é positivo, tem gente que pensa que é negativo. Mas mudou.

Tatiana Merlino - Você pode falar um pouco dos dois lados, do lado positivo e do lado negativo?
O lado positivo é que a elite não sabe mais o que é a favela, não tem nem noção. O governo não tem noção do que é a favela mais, porque é outra favela, é outra coisa... E o lado negativo é que a população sempre vai ser oprimida.

Tatiana Merlino - O lado positivo é outra coisa como?
Não tem como explicar, assim... Mas mudou, eu, por exemplo, quando eu escrevi o Manual Prático do Ódio a favela era aqui, agora se eu for escrever sobre a favela agora é outra coisa. Por isso eu não escrevo mais sobre a favela, o meu próximo romance não é mais sobre a favela, por que eu não faço mais questão da elite saber o que é a favela não, não me interessa mais...

Lúcia Rodrigues - Mas mudou exatamente o quê? Explica um pouco melhor.
Mudou tudo. Mudou a vida criminal, tem regra, mudou tudo o que você imagina na vida cotidiana da periferia mudou.

Lúcia Rodrigues - É um Estado paralelo dentro da favela?
Poder paralelo? Não, é o poder. Esse negócio de dizer que é o poder paralelo, não existe o poder paralelo, o Estado não manda na favela, quem disse que o Estado manda na favela? A PM vai lá manda o cara por a mão da cabeça e tudo, repudia o cara, mas depois o cara volta a ser da favela, entendeu? Por mais que os caras cerquem um motoboy, cerquem o cara que está dentro do ônibus, bata geral em todo mundo eles vão embora e a favela continua. Então mudou tudo e vai mudar mais ainda, ta em processo de mudança.

Lúcia Rodrigues - Mas houve regras fixadas claras? O que aconteceu?
Há regras fixadas claras e toda uma norma de conduta e de respeito que o Estado nunca conseguiu impor.

Renato Pompeu - Quem impõe?
O crime.

Otávio Nagoya – Para os moleques de dentro você acha que é melhor ou pior?
Por um lado é melhor, por outro lado não. Você imagina que a gente deixou de viver num estado em que você pisava no meu pé e você podia levar uma comigo e eu podia te matar; você podia pisar no meu pé e levar uma comigo e eu ter que me segurar e a gente ter que se segurar, mas ao mesmo tempo nós dois estamos regidos por uma força maior que pode não se segurar, entendeu? Então você pensa o que é melhor: você estourar o seu ódio ali na hora ou você viver sob constante ameaça de um ódio maior.

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