quinta-feira, 24 de setembro de 2009

As organizações sociais no SUS: a Vitrine Despedaçada


Roberto Passos

A aprovação do projeto de lei de iniciativa do governo do Estado de São Paulo que estende a todos os hospitais públicos o gerenciamento por entidades privadas (OSs) contratadas pelo governo, e as autoriza a atenderem segurados dos planos privados de saúde até 25% da sua capacidade, gerou indignação em todos nós, que somos, simultaneamente, pesquisadores da área e defensores intransigentes do caráter essencialmente público desse sistema.
Durante uma década, a experiência do conjunto dos hospitais administrados pelas OSs paulistas (que somam atualmente mais de 20) foi reiteradamente apresentada como um modelo exemplar de contratação de entidades privadas em caráter complementar. Afirmava-se sua superioridade em relação às unidades da rede própria do SUS pelo fato de combinar características tais como rápido atendimento, cumprimento de metas assistenciais e operação eficiente a custos razoáveis. Com efeito, esses hospitais foram transformados pelo governo paulista numa espécie de vitrine que exibia tudo o que há de mais funcional e mais confiável em matéria de assistência hospitalar pública.
Pode-se perguntar, então, por que motivo as autoridades estaduais propõem agora refazer o contrato de exclusividade com o SUS. É preciso salientar, em primeiro lugar, que a vitrine assistencial foi montada mediante claros privilégios de financiamento. O regime de comodato possibilitou a entrega de estabelecimentos hospitalares plenamente equipados e com infra-estrutura completa, caracterizando um considerável subsídio público. Com essa condição, a necessidade de investimento inicial foi dramaticamente reduzida. Por sua vez, a média de custeio do modelo deu-se em valores excepcionais em relação à rede própria. Entre 2004 e 2008, o orçamento da secretaria estadual de saúde cresceu 90%, enquanto a fração destinada às OS teve aumento de 200%. Ademais, os gestores estaduais da saúde dedicaram-se de corpo e alma a validar o modelo, concentrando esforços e recursos humanos no desenvolvimento de uma complexa estrutura técnico-administrativa para acompanhamento e controle dos contratos de gestão, muitas vezes se descurando da rede própria do SUS.
O problema é que, passados dez anos, os hospitais das OSs começam a necessitar de novos equipamentos e novas tecnologias, além de reformas das instalações. Por motivo de limitação orçamentária, tais necessidades não conseguem ser cobertas pelos recursos usuais de custeio. Daqui surge a idéia de abrir as portas para os planos de saúde como uma maneira de atrair recursos adicionais.
O que precisa ser discutido agora não é se os planos de saúde - que já se alimentam de vultosos subsídios e isenções fiscais dados pelo Estado brasileiro - podem contribuir ou não à estabilidade financeira dessas entidades. Na verdade, pode até acontecer que esse mecanismo tenha um efeito contrário e sirva como mais um canal de transferência de recursos públicos para os planos de saúde, que já é posição do Estado brasileiro há 20 anos. Mas supondo que o dinheiro dos planos venha a remunerar pelo menos parte dos serviços prestados pelas OS, o que se põe em questão é algo mais decisivo, é o princípio de Eqüidade. Serão incontroláveis as várias formas de discriminação contra os usuários do SUS, aumentando a repressão da demanda aos usuários que não possuem planos privados e nas portas e guichês de admissão, nos prazos de espera no agendamento de consultas, exames e procedimentos especializados. Mais cedo ou mais tarde virá a diferenciação na qualidade técnica dos serviços prestados aos clientes dos planos, como condutas diagnósticas e terapêuticas, portanto, não apenas vantagens cosméticas como, por exemplo, quartos confortáveis. Pode-se concluir, que a vitrine das OSs será definitivamente despedaçada.
Os economistas que se especializam no estudo da gestão de sistemas de saúde divergem quanto à forma mais eficiente de como o Estado pode garantir serviços de saúde gratuitos ou subsidiados à população: pela oferta direta desses serviços, pela contratação terceirizada de entidades privadas ou mediante planos de saúde públicos. No entanto, quanto ao objetivo de eqüidade, há um consenso de que o pior sistema é aquele em que os hospitais e os centros de saúde atendem simultaneamente à clientela de planos privados e aos usuários do sistema público, porque em tal contexto dificilmente podem ser controlados os abusos cometidos contra estes últimos.
Por trás desse provável cenário de aumento da iniqüidade no acesso a serviços de saúde encontra-se uma questão central, que é o financiamento público federal, historicamente insuficiente. Mas também desponta, com muita clareza, uma falha flagrante do sistema de saúde brasileiro: a ausência de uma relação totalmente transparente e democrática entre o setor público e privado de saúde, e uma adequada regulação dessa relação pela União.
Agradeço ao companheiro Nelsão pelos subsídios e sugestões.
Roberto Passos é presidente do Cebes.

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