O estopim da atual crise recessiva internacional foi a desregulamentação financeira. Uma nova regulamentação das finanças globais está no centro da agenda das relações internacionais. Na próxima cúpula do G20, que ocorrerá em abril, em Londres, o tema principal do debate será a regulação dos mercados financeiros. Tanto Obama quanto os principais líderes governamentais da Europa têm declarado que implementarão políticas regulatórias. Constatar isso não significa endossar previamente ou se iludir com as decisões a serem tomadas. O Brasil, membro do G20, participará da cúpula de Londres. Mas o que se passa no sistema financeiro brasileiro em matéria regulatória? Resposta: já se passam vinte anos de não-regulamentação dos dispositivos constitucionais.
O artigo 192 da Constituição de 1988 era composto, antes de ser emendado em 2003, por um caput, oito incisos e três parágrafos. O caput era o seguinte: “Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:”.
Seguiam-se, então, oito incisos, entre os quais, destaco aqui o quarto, que explicitava que a lei complementar regulatória disporia sobre “IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas”.
Por fim, realço que o terceiro parágrafo determinava o seguinte: “§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”
Esse conteúdo da Constituição deixa claro que o sistema financeiro nacional deve 1) promover o desenvolvimento equilibrado do país, no sentido de eliminar as profundas desigualdades regionais e 2) servir aos interesses da coletividade, da nação, e não às oligarquias financeiras, como ocorria durante o período de crise inflacionária. A Subcomissão do Sistema Financeiro do Congresso Constituinte alertava que a atividade financeira era uma concessão do Estado e, por isso, deveria cumprir função social.
Promulgada a Constituição, em 4 de outubro de 1988, inicia-se imediata reação conservadora, pró-status quo da especulação financeira, dentro e fora do aparelho de Estado, contra o conteúdo do artigo 192. Em 6 de outubro, o Banco Central edita a Circular nº 1365, que dizia que enquanto não fosse editada a Lei Complementar mencionada no caput do artigo, o sistema financeiro nacional permaneceria operando sob o regime das leis até então vigentes, Leis 4595/64, 4728/65 e 6385/76, além das demais disposições legais e regulamentares a ele pertinentes e aplicáveis. Em 7 de outubro, o Diário Oficial publica o Parecer SR-70, de Saulo Ramos, então consultor geral da República. Esse parecer defendia que o parágrafo terceiro do artigo 192 não era auto-aplicável, requerendo a vigência da limitação dos juros regulamentação completa do referido artigo. Em 1997, o então senador José Serra apresentou a Proposta de Emenda Constitucional nº 21/97, que ansiava revogar todo o artigo 192. Essa PEC não foi integralmente aprovada, mas deu o tom da mudança, ensejou uma nova redação ao caput e a supressão dos oito incisos e três parágrafos, resultando no seguinte formato atual do artigo 192, dado pela Emenda Constitucional 40/2003, aprovada logo no início do primeiro governo Lula: ‘Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.”
Assim, a EC nº 40/2003, fatiou a regulamentação do sistema financeiro nacional em várias leis complementares e suprimiu conteúdos originais do artigo 192, como a limitação dos juros. O efeito da EC nº 40 foi o completo esvaziamento do debate, no Congresso Nacional, da regulamentação do sistema financeiro. Desse modo, após quinze anos de polêmica sobre a regulamentação do sistema financeiro nacional, determinada pela Constituição Federal, encerrou-se, sem o cumprimento da missão parlamentar, um capítulo dessa disputa política.
Os quinze anos de contenda em torno da regulamentação do artigo 192 e a sua efetiva não-regulamentação não impediram que o Executivo e o Legislativo - em sintonia com os interesses financeiros organizados dentro e fora do país, mas mediante condições e procedimentos jurídico-institucionais muito questionáveis e a passividade do Supremo Tribunal Federal -, implementassem políticas regulatórias e de estabilização monetária pró-mercado financeiro, a começar pelo Plano Real. Em 1º de julho de 1994, entra em vigor não só a nova moeda, o real, mas também um novo Conselho Monetário Nacional, bastante insulado burocraticamente, composto pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do Banco Central do Brasil. Em 1996, a Circular 2698, do BCB, cria o Comitê de Política Monetária (Copom). Com o colapso do câmbio fixo, entre fins de 1998 e início de 1999, a flutuação forçada do câmbio se faz acompanhar pela introdução, logo no início da gestão do BCB encabeçada por Armínio Fraga, da substituição da ancora cambial pelo regime de metas de inflação. Tal regime foi instituído por decreto do Presidente da República, amparado, entre outros, no artigo 84, inciso IV, da Constituição, a mesma Carta Magna cujo artigo 192 aguardava regulamentação. E também a mesma Lei das leis que, em seu artigo 48, diz: “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, [...] dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:[...]XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações;
XIV - moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal.”
O momento é propício para que a regulamentação do artigo 192 retorne à agenda pública e institucional, seja pelas características da conjuntura, pelo impacto da crise, pelas deficiências jurídicas a serem sanadas, pelas condições político-institucionais – como o fato de lei complementar exigir, para aprovação, maioria absoluta de votos, e não três quintos -, pelo anseio sociopolítico de que a economia retome seu curso de crescimento, pela insatisfação dos consumidores e outros atores sociais com os bancos etc. O atual padrão de delegação do Congresso Nacional ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central, com o Legislativo controlando a autoridade monetária num momento ex post é, sob diversos aspectos, questionável e inadequado.
A adesão do PT à regulamentação do artigo 192 seria um passo coerente com a Resolução Política aprovada pelo Diretório Nacional em 11 de fevereiro, que, entre outros, 1) denuncia a “atitude inaceitável dos grandes bancos que retraíram a concessão de crédito e aumentaram muito as taxas de juros, apesar da forte redução dos compulsórios”; 2) enuncia a “queda do ‘muro de Berlim’ neoliberal” e 3) diz ser “fundamental que os partidos de esquerda e os movimentos sociais vinculados aos trabalhadores realizem um amplo e qualificado debate sobre a crise e, principalmente, sobre as alternativas”.
Uma das alternativas mais importantes à crise é justamente dar efetividade institucional ao desígnio do artigo 192 da Lei Magna, mesmo após a EC nº 40: “O sistema financeiro nacional [deve ser] estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”. Eis exposta uma missão parlamentar – que também pode ser abraçada pelo Executivo – a ser cumprida. E não se trata de missão impossível, senão oportuna, no Brasil e noutros países e regiões.
O artigo 192 da Constituição de 1988 era composto, antes de ser emendado em 2003, por um caput, oito incisos e três parágrafos. O caput era o seguinte: “Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre:”.
Seguiam-se, então, oito incisos, entre os quais, destaco aqui o quarto, que explicitava que a lei complementar regulatória disporia sobre “IV - a organização, o funcionamento e as atribuições do banco central e demais instituições financeiras públicas e privadas”.
Por fim, realço que o terceiro parágrafo determinava o seguinte: “§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”
Esse conteúdo da Constituição deixa claro que o sistema financeiro nacional deve 1) promover o desenvolvimento equilibrado do país, no sentido de eliminar as profundas desigualdades regionais e 2) servir aos interesses da coletividade, da nação, e não às oligarquias financeiras, como ocorria durante o período de crise inflacionária. A Subcomissão do Sistema Financeiro do Congresso Constituinte alertava que a atividade financeira era uma concessão do Estado e, por isso, deveria cumprir função social.
Promulgada a Constituição, em 4 de outubro de 1988, inicia-se imediata reação conservadora, pró-status quo da especulação financeira, dentro e fora do aparelho de Estado, contra o conteúdo do artigo 192. Em 6 de outubro, o Banco Central edita a Circular nº 1365, que dizia que enquanto não fosse editada a Lei Complementar mencionada no caput do artigo, o sistema financeiro nacional permaneceria operando sob o regime das leis até então vigentes, Leis 4595/64, 4728/65 e 6385/76, além das demais disposições legais e regulamentares a ele pertinentes e aplicáveis. Em 7 de outubro, o Diário Oficial publica o Parecer SR-70, de Saulo Ramos, então consultor geral da República. Esse parecer defendia que o parágrafo terceiro do artigo 192 não era auto-aplicável, requerendo a vigência da limitação dos juros regulamentação completa do referido artigo. Em 1997, o então senador José Serra apresentou a Proposta de Emenda Constitucional nº 21/97, que ansiava revogar todo o artigo 192. Essa PEC não foi integralmente aprovada, mas deu o tom da mudança, ensejou uma nova redação ao caput e a supressão dos oito incisos e três parágrafos, resultando no seguinte formato atual do artigo 192, dado pela Emenda Constitucional 40/2003, aprovada logo no início do primeiro governo Lula: ‘Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.”
Assim, a EC nº 40/2003, fatiou a regulamentação do sistema financeiro nacional em várias leis complementares e suprimiu conteúdos originais do artigo 192, como a limitação dos juros. O efeito da EC nº 40 foi o completo esvaziamento do debate, no Congresso Nacional, da regulamentação do sistema financeiro. Desse modo, após quinze anos de polêmica sobre a regulamentação do sistema financeiro nacional, determinada pela Constituição Federal, encerrou-se, sem o cumprimento da missão parlamentar, um capítulo dessa disputa política.
Os quinze anos de contenda em torno da regulamentação do artigo 192 e a sua efetiva não-regulamentação não impediram que o Executivo e o Legislativo - em sintonia com os interesses financeiros organizados dentro e fora do país, mas mediante condições e procedimentos jurídico-institucionais muito questionáveis e a passividade do Supremo Tribunal Federal -, implementassem políticas regulatórias e de estabilização monetária pró-mercado financeiro, a começar pelo Plano Real. Em 1º de julho de 1994, entra em vigor não só a nova moeda, o real, mas também um novo Conselho Monetário Nacional, bastante insulado burocraticamente, composto pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do Banco Central do Brasil. Em 1996, a Circular 2698, do BCB, cria o Comitê de Política Monetária (Copom). Com o colapso do câmbio fixo, entre fins de 1998 e início de 1999, a flutuação forçada do câmbio se faz acompanhar pela introdução, logo no início da gestão do BCB encabeçada por Armínio Fraga, da substituição da ancora cambial pelo regime de metas de inflação. Tal regime foi instituído por decreto do Presidente da República, amparado, entre outros, no artigo 84, inciso IV, da Constituição, a mesma Carta Magna cujo artigo 192 aguardava regulamentação. E também a mesma Lei das leis que, em seu artigo 48, diz: “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, [...] dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:[...]XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações;
XIV - moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal.”
O momento é propício para que a regulamentação do artigo 192 retorne à agenda pública e institucional, seja pelas características da conjuntura, pelo impacto da crise, pelas deficiências jurídicas a serem sanadas, pelas condições político-institucionais – como o fato de lei complementar exigir, para aprovação, maioria absoluta de votos, e não três quintos -, pelo anseio sociopolítico de que a economia retome seu curso de crescimento, pela insatisfação dos consumidores e outros atores sociais com os bancos etc. O atual padrão de delegação do Congresso Nacional ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central, com o Legislativo controlando a autoridade monetária num momento ex post é, sob diversos aspectos, questionável e inadequado.
A adesão do PT à regulamentação do artigo 192 seria um passo coerente com a Resolução Política aprovada pelo Diretório Nacional em 11 de fevereiro, que, entre outros, 1) denuncia a “atitude inaceitável dos grandes bancos que retraíram a concessão de crédito e aumentaram muito as taxas de juros, apesar da forte redução dos compulsórios”; 2) enuncia a “queda do ‘muro de Berlim’ neoliberal” e 3) diz ser “fundamental que os partidos de esquerda e os movimentos sociais vinculados aos trabalhadores realizem um amplo e qualificado debate sobre a crise e, principalmente, sobre as alternativas”.
Uma das alternativas mais importantes à crise é justamente dar efetividade institucional ao desígnio do artigo 192 da Lei Magna, mesmo após a EC nº 40: “O sistema financeiro nacional [deve ser] estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade”. Eis exposta uma missão parlamentar – que também pode ser abraçada pelo Executivo – a ser cumprida. E não se trata de missão impossível, senão oportuna, no Brasil e noutros países e regiões.
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