Em SP, entidades privadas administram projetos públicos e dominam cultura
Para críticos, modelo é uma privatização branca, já Estado defende que OS flexibiliza gestão; organizações são hoje superestruturas
FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
No primeiro contrato que assinou com a Secretaria de Estado da Cultura, em novembro de 2004, a Apaa (Associação Paulista dos Amigos da Arte) recebeu R$ 6,5 milhões de verba pública para administrar por um ano quatro teatros e um centro cultural. Neste 2010, quando acumula a gestão de uma penca de outros projetos e eventos, a entidade ganhará do governo pelo menos R$ 45,9 milhões.
Na época do primeiro repasse, a Apaa tinha 76 funcionários; hoje, possui 297.
Crescimento parecido teve a Associação dos Amigos do Projeto Guri, que administra oficinas de educação musical a crianças e jovens: dos R$ 15,2 milhões recebidos em 2005 (para atender 21 mil alunos), saltou para R$ 56 milhões em 2010 (previsão de atender 53 mil alunos). Tinha no início 55 empregados; hoje, são 1.631.
Ambas são OS (Organizações Sociais) do setor cultural, entidades de direito privado sem fins lucrativos, credenciadas, por lei, para administrar projetos e equipamentos culturais públicos. E, como muitas das 19 entidades credenciadas, multiplicaram com rapidez verba e atribuições, tornando-se superestruturas.
Passados cinco anos dos primeiros contratos, assinados no fim de 2004, todos os equipamentos culturais do Estado são administrados por OS com dinheiro público. O valor dos repasses aumenta a cada ano. Em 2008, o percentual destinado às OS atingiu 69,7% do orçamento da secretaria -depois, decaiu pelo aumento do investimento em obras.
Também utilizado na área de saúde, as OS são amparadas por uma lei estadual. O texto dispensa licitação para a escolha das entidades. Impõe a criação de conselhos de administração, fiscalização externa e a publicação anual de relatórios.
Decreto de 2006 fixou normas para contratação de pessoal pelas OS, como divulgação do processo seletivo e vedação à admissão de parentes dos diretores (que são remunerados) e conselheiros (não são).
A natureza jurídica das OS permite que elas captem recursos além da verba pública, mas em geral essa fonte "externa" representa minoria nos orçamentos. Isso até em casos como o da Fundação Osesp (da Sinfônica do Estado). Com grande potencial de retorno e um conselho repleto de personalidades, receberá em 2010 ao menos R$ 43 milhões do governo, enquanto, segundo a secretaria, a previsão de captação de outros recursos (incluindo Lei Rouanet) é de R$ 24 milhões.
Críticos alegam que o modelo é uma privatização branca. O Estado defende que as OS flexibilizam a gestão. Para o secretário da Cultura, João Sayad, o modelo está consolidado.
À secretaria, diz ele, cabe definir as políticas públicas. A diretriz às vezes entra em choque com a desejada autonomia das OS quanto ao rumo artístico dos projetos.
Legalidade das OS será examinada
STF planeja retomar neste semestre julgamento contra a lei federal que permitiu a criação das organizações sociais
Se a lei for considerada inconstitucional, pode pôr fim às organizações sociais nos Estados em que elas já são desenvolvidas, como SP
DA REPORTAGEM LOCAL
Doze anos depois de sancionada as leis que instituem as Organizações Sociais, a controvérsia em torno da legalidade do modelo pode ter um desfecho. O STF (Supremo Tribunal Federal) planeja retomar ainda neste semestre o julgamento de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra a lei federal que permitiu a criação das OS, sancionada em 1998 pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
O teor do texto é semelhante ao da lei estadual, do mesmo ano, que ampara as OS de cultura e de saúde em São Paulo.
A Adin foi movida em 1998 pelo PT e pelo PDT contra o então presidente da República e o Congresso Nacional, com pedido de liminar para suspender a lei. Em 2007, foi negada a liminar. Mas a ação já está pronta para ter seu mérito votado. A expectativa do relator, Carlos Ayres Britto, é julgá-la ainda neste semestre. O ministro informou ter pedido prioridade à sua assessoria jurídica para análise do processo.
Questionado sobre os eventuais reflexos da decisão sobre as leis estaduais, Ayres Britto disse que a questão será analisada no próprio julgamento da Adin. Há expectativa de que, se a lei federal for considerada inconstitucional, a decisão seja seguida por tribunais inferiores, pondo fim ao modelo nos Estados em que ele já está desenvolvido, como São Paulo.
Professora titular de direito administrativo da USP, Maria Sylvia Di Pietro avalia que o modelo das OS não tem respaldo legal. "Se a Constituição impõe normas para a organização pública para proteger o dinheiro e o serviço públicos, com esse modelo você contraria o regime público da administração. Sou contra o modelo em si. Do ponto de vista jurídico não é aceitável", afirma, e ressalva não conhecer a situação específica das OS da cultura em SP.
"Não sou a favor de deixar a legalidade de lado em nome da eficiência. Tem que buscar a eficiência dentro da legalidade. Além do que, administração particular não é garantia de eficiência. Muitas faculdades privadas foram fechadas por falta de eficiência", completou a professora. Outro crítico do modelo é o promotor Sílvio Marques, que investiga irregularidades envolvendo duas OS (Associação de Amigos do MIS e Associação de Amigos do Mube). O Ministério Público aponta desvio de verba e uso de notas frias por gestões passadas das entidades, cujos contratos já foram rompidos pela Secretaria de Cultura, e conseguiu na Justiça a quebra do sigilo bancário dos gestores. Não houve denúncia até o momento.
Quanto à lei, Marques critica especialmente a dispensa de licitação. "Não há motivo algum para dispensar licitação. A administração fica livre para escolher. Está havendo uma sangria de dinheiro público, porque essas OS cometem irregularidades e o acompanhamento, na maioria dos casos, é falho. O TCE [Tribunal de Contas do Estado, a quem cabe a fiscalização externa] não tem condições de verificar todos os contratos e todos os atos de todas as OS. Fazem por amostragem, e aí passa muita coisa", diz.
(FABIO VICTOR)
Para críticos, modelo é uma privatização branca, já Estado defende que OS flexibiliza gestão; organizações são hoje superestruturas
FABIO VICTOR
DA REPORTAGEM LOCAL
No primeiro contrato que assinou com a Secretaria de Estado da Cultura, em novembro de 2004, a Apaa (Associação Paulista dos Amigos da Arte) recebeu R$ 6,5 milhões de verba pública para administrar por um ano quatro teatros e um centro cultural. Neste 2010, quando acumula a gestão de uma penca de outros projetos e eventos, a entidade ganhará do governo pelo menos R$ 45,9 milhões.
Na época do primeiro repasse, a Apaa tinha 76 funcionários; hoje, possui 297.
Crescimento parecido teve a Associação dos Amigos do Projeto Guri, que administra oficinas de educação musical a crianças e jovens: dos R$ 15,2 milhões recebidos em 2005 (para atender 21 mil alunos), saltou para R$ 56 milhões em 2010 (previsão de atender 53 mil alunos). Tinha no início 55 empregados; hoje, são 1.631.
Ambas são OS (Organizações Sociais) do setor cultural, entidades de direito privado sem fins lucrativos, credenciadas, por lei, para administrar projetos e equipamentos culturais públicos. E, como muitas das 19 entidades credenciadas, multiplicaram com rapidez verba e atribuições, tornando-se superestruturas.
Passados cinco anos dos primeiros contratos, assinados no fim de 2004, todos os equipamentos culturais do Estado são administrados por OS com dinheiro público. O valor dos repasses aumenta a cada ano. Em 2008, o percentual destinado às OS atingiu 69,7% do orçamento da secretaria -depois, decaiu pelo aumento do investimento em obras.
Também utilizado na área de saúde, as OS são amparadas por uma lei estadual. O texto dispensa licitação para a escolha das entidades. Impõe a criação de conselhos de administração, fiscalização externa e a publicação anual de relatórios.
Decreto de 2006 fixou normas para contratação de pessoal pelas OS, como divulgação do processo seletivo e vedação à admissão de parentes dos diretores (que são remunerados) e conselheiros (não são).
A natureza jurídica das OS permite que elas captem recursos além da verba pública, mas em geral essa fonte "externa" representa minoria nos orçamentos. Isso até em casos como o da Fundação Osesp (da Sinfônica do Estado). Com grande potencial de retorno e um conselho repleto de personalidades, receberá em 2010 ao menos R$ 43 milhões do governo, enquanto, segundo a secretaria, a previsão de captação de outros recursos (incluindo Lei Rouanet) é de R$ 24 milhões.
Críticos alegam que o modelo é uma privatização branca. O Estado defende que as OS flexibilizam a gestão. Para o secretário da Cultura, João Sayad, o modelo está consolidado.
À secretaria, diz ele, cabe definir as políticas públicas. A diretriz às vezes entra em choque com a desejada autonomia das OS quanto ao rumo artístico dos projetos.
Legalidade das OS será examinada
STF planeja retomar neste semestre julgamento contra a lei federal que permitiu a criação das organizações sociais
Se a lei for considerada inconstitucional, pode pôr fim às organizações sociais nos Estados em que elas já são desenvolvidas, como SP
DA REPORTAGEM LOCAL
Doze anos depois de sancionada as leis que instituem as Organizações Sociais, a controvérsia em torno da legalidade do modelo pode ter um desfecho. O STF (Supremo Tribunal Federal) planeja retomar ainda neste semestre o julgamento de uma Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra a lei federal que permitiu a criação das OS, sancionada em 1998 pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
O teor do texto é semelhante ao da lei estadual, do mesmo ano, que ampara as OS de cultura e de saúde em São Paulo.
A Adin foi movida em 1998 pelo PT e pelo PDT contra o então presidente da República e o Congresso Nacional, com pedido de liminar para suspender a lei. Em 2007, foi negada a liminar. Mas a ação já está pronta para ter seu mérito votado. A expectativa do relator, Carlos Ayres Britto, é julgá-la ainda neste semestre. O ministro informou ter pedido prioridade à sua assessoria jurídica para análise do processo.
Questionado sobre os eventuais reflexos da decisão sobre as leis estaduais, Ayres Britto disse que a questão será analisada no próprio julgamento da Adin. Há expectativa de que, se a lei federal for considerada inconstitucional, a decisão seja seguida por tribunais inferiores, pondo fim ao modelo nos Estados em que ele já está desenvolvido, como São Paulo.
Professora titular de direito administrativo da USP, Maria Sylvia Di Pietro avalia que o modelo das OS não tem respaldo legal. "Se a Constituição impõe normas para a organização pública para proteger o dinheiro e o serviço públicos, com esse modelo você contraria o regime público da administração. Sou contra o modelo em si. Do ponto de vista jurídico não é aceitável", afirma, e ressalva não conhecer a situação específica das OS da cultura em SP.
"Não sou a favor de deixar a legalidade de lado em nome da eficiência. Tem que buscar a eficiência dentro da legalidade. Além do que, administração particular não é garantia de eficiência. Muitas faculdades privadas foram fechadas por falta de eficiência", completou a professora. Outro crítico do modelo é o promotor Sílvio Marques, que investiga irregularidades envolvendo duas OS (Associação de Amigos do MIS e Associação de Amigos do Mube). O Ministério Público aponta desvio de verba e uso de notas frias por gestões passadas das entidades, cujos contratos já foram rompidos pela Secretaria de Cultura, e conseguiu na Justiça a quebra do sigilo bancário dos gestores. Não houve denúncia até o momento.
Quanto à lei, Marques critica especialmente a dispensa de licitação. "Não há motivo algum para dispensar licitação. A administração fica livre para escolher. Está havendo uma sangria de dinheiro público, porque essas OS cometem irregularidades e o acompanhamento, na maioria dos casos, é falho. O TCE [Tribunal de Contas do Estado, a quem cabe a fiscalização externa] não tem condições de verificar todos os contratos e todos os atos de todas as OS. Fazem por amostragem, e aí passa muita coisa", diz.
(FABIO VICTOR)
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