Entrevista Boaventura de Sousa Santos
Por Tatiana Merlino
Nos últimos dez anos, a América Latina se transformou na vanguarda da luta anti-imperialista: “foi o continente onde o socialismo do século 21 entrou na agenda política”. A análise é do intelectual português Boaventura de Sousa Santos, que vê grandes avanços no domínio político e “alguns avanços sociais” durante a década passada no continente latinoamericano. No entanto, ele afirma estar receoso com início do novo decênio: “vejo sinais perturbadores”, diz, referindo-se à recente derrota eleitoral da “esquerda moderada” no Chile e ao crescimento da direita na Venezuela.
Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e professor titular da Universidade de Coimbra, em Portugal, Boaventura é considerado um dos principais intelectuais da língua portuguesa na área de ciências sociais. Em conversa com a Caros Amigos, o português falou sobre a crise do capitalismo, o papel da China no novo cenário político-econômico mundial, as propostas de integração da América Latino, e criticou o primeiro ano do governo de Obama: “Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra”.
Diferentemente do que muitos analistas imaginavam, a crise financeira mundial não resultou no colapso do capitalismo. Como o senhor vê a situação daqui para a frente? O que podemos esperar?
Boaventura de Sousa Santos – Essa situação mostra duas coisas: uma, que o pensamento crítico e de esquerda deveria fazer uma moratória de uma ideia que anda sempre presente, que é a crise final do capitalismo. Quantas crises finais já vimos, quantas foram anunciadas? Meus amigos Immanuel Wallerstein e David Harvey já estão falando em crise final. É evidente que haverá um fim, mas é muito difícil imaginá-lo agora. Hoje, o capitalismo não é um modo de produção, e sim um modo de civilização. Temos hábitos que não se imagina que possam existir fora da sociedade capitalista. Portanto, essa é uma luta por uma nova hegemonia, uma nova cultura. São necessárias transformações civilizacionais, e é por meio de uma luta de civilização que o capitalismo vai, eventualmente, cair. Mas não será já. Por exemplo, a crise financeira mostrou exatamente a capacidade de fôlego e de renovação interna que o capitalismo tem. Ele não tem princípios – só tem um, o lucro. Por isso que o capitalismo é, por essência, antidemocrático. Ele tolera a democracia enquanto ela for irrelevante para a proteção dos seus interesses. No momento em que ela ameaçar o desenvolvimento dos seus interesses, o capitalismo pode se transformar em anti-democrático.
Mas o fatos dos bancos terem recorrido ao Estado não muda o cenário do capitalismo mundial?
A partir de uma leitura marxista de Estado não há nenhuma surpresa. O Estado está aí para segurar o capital, e obviamente o Estado americano sustentou o capital financeiro. É aí que podemos discutir em que fase do capitalismo estamos. Nesse ponto eu concordo com os meus colegas. Acho que estamos numa fase particularmente perdedora do capitalismo. E, historicamente, uma certa derrocada do capitalismo acontece fundamentalmente nos momentos em que o capital financeiro começa a dominar o capital produtivo. Foi assim no declínio da Inglaterra, e hoje cremos que pode vir a dar-se a crise desse sistema. A palavra mais demonizada dos últimos tempos foi a “nacionalização”. No entanto, os homens de Wall Street não
hesitaram em aceitar a nacionalização da grande empresa de seguros A&G e de alguns bancos. Foram salvos exatamente pelo Estado. Ou seja, não há princípios, há resultados, há lucros. Essa crise não foi superada, pois, agora, foi aparentemente resolvida pelo capital financeiro. O presidente Obama declara que tem que haver uma regulação do capital financeiro porque a situação não é admissível para os cidadãos. Isso, mesmo numa democracia tão limitada como a norte-americana, em que tantos trilhões de dólares foram injetados no sistema financeiro para obter lucros fabulosos e se distribuir bônus e subsídios aos seus executivos, como faziam antes. Então, nada mudou. Essa é a primeira razão para mostrarmos que temos que ter uma certa prudência quando declararmos as fases finais do capitalismo. Temos que continuar a lutar, mas sabendo que esse é um sistema que tem uma capacidade histórica de se renovar. A segunda razão pela qual nada mudou é que a esquerda nas duas últimas décadas comprou as teses neoliberais. Aquela esquerda que tem a pretensão de chegar ao governo em muitos países – com exceção de alguns países do continente, como Equador, Bolívia ou Venezuela – acabou por aceitar que o mercado é um princípio de eficiência fundamental, que é melhor que o Estado, que a desregulação é importante, que a iniciativa privada é importante. Ou seja, a esquerda ficou desarmada.
Como o senhor vê o papel da China nessa nova conjuntura político-econô mica? Ela tem potencial para redefinir a geopolítica mundial?
Tem, sim, e estamos a falar de mais de um quinto da população mundial, com uma parcela significativa da humanidade. Esse país tem uma grande capacidade de ser uma força internacional. Ao contrário dos países ocidentais, injetou dinheiro na economia produtiva e, portanto, é o primeiro país a sair da crise. Com um crescimento que, calcula-se, será de 9% neste ano. Entre suas limitações está a disjunção entre o sistema político e econômico. É um sistema do lucro, do egoísmo, governado por um partido único autoritário que tem outras lógicas de funcionamento. Por quanto tempo essa disjunção vai existir? A China vai ser uma influência boa e má. Boa no sentido de moderar os instintos imperialistas dos Estados Unidos. Mas isso não é garantia que não possa vir a prejudicar outros interesses da humanidade.
Quando Barack Obama ganhou as eleições presidenciais, o senhor escreveu um artigo falando do valor simbólico da vitória. Passado um ano de governo, recém-completado, qual é o balanço que o senhor faz, tanto da política interna quanto externa?
Nesse artigo eu já mostrava alguma distância em relação ao Obama. É curioso que fui talvez uma das primeiras pessoas a escrever colunas internacionais que não “embandeiraram arco”, como a gente diz em Portugal, com a eleição de Obama. É claro que simbolicamente há um poder enorme, porque, não ele, mas sua mulher, é descendente de escravos, e, assim, entra na Casa Branca uma descendente dos escravos que construíram a mesma Casa Branca. E isso é de um valor simbólico notável, do mesmo modo que é chegar um operário ao governo no Brasil. Mas um ano depois, o que vemos é que, por mais inteligente que seja um homem – e ele é o melhor aluno de Harvard até hoje –, por mais que ele tenha uma capacidade retórica impressionante, quando chega ao poder fica totalmente enredado a esse poder. Ao fim desse primeiro ano de mandato só temos desilusões. De fato, não há nada de positivo. Quando da crise financeira, o Obama ainda era candidato e o vi na televisão rodeado pelos grandes homens do Goldman Sachs [um dos maiores bancos de investimento do mundo], que são hoje seus consultores. Portanto, ainda como candidato ele deu sinais de que não ia mudar a política do país. Mas foi pior do que aquilo que se esperava, na medida em que ele tinha um perfil de luta contra a guerra. Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra. O Obama também tem a sua. E esta, todavia, é quiçá mais perigosa que a guerra do Bush contra o Iraque. Porque é uma guerra no Afeganistão, onde historicamente ninguém ganha. E é uma guerra que se estende a um país que antes era amigo, o Paquistão, que está a ser desagregado devido à influencia dos EUA. Portanto, a desilusão no campo da guerra é total. A segunda desilusão é o comportamento em relação à América Latina. Não é desilusão porque eu não estava iludido, mas é evidente que muita gente ficou, porque Obama veio com um discurso completamente distinto, de estender a mão aos colegas latino-americanos. Mas a verdade é que a Quarta Frota continua e vieram as sete bases militares na Colômbia, que não têm nada a ver com a droga, nem sequer com a guerrilha. Elas estão orientadas basicamente para a biodiversidade desse continente, área estratégica para os Estados Unidos. Portanto, não pode ocorrer nada nesse continente que ponha em risco os seus interesses estratégicos ou o seu acesso aos recursos naturais.
Tatiana Merlino é jornalista
Para ler a entrevista completa e outras matérias confira a edição de março da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou clique aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.
Nos últimos dez anos, a América Latina se transformou na vanguarda da luta anti-imperialista: “foi o continente onde o socialismo do século 21 entrou na agenda política”. A análise é do intelectual português Boaventura de Sousa Santos, que vê grandes avanços no domínio político e “alguns avanços sociais” durante a década passada no continente latinoamericano. No entanto, ele afirma estar receoso com início do novo decênio: “vejo sinais perturbadores”, diz, referindo-se à recente derrota eleitoral da “esquerda moderada” no Chile e ao crescimento da direita na Venezuela.
Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, Estados Unidos, e professor titular da Universidade de Coimbra, em Portugal, Boaventura é considerado um dos principais intelectuais da língua portuguesa na área de ciências sociais. Em conversa com a Caros Amigos, o português falou sobre a crise do capitalismo, o papel da China no novo cenário político-econômico mundial, as propostas de integração da América Latino, e criticou o primeiro ano do governo de Obama: “Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra”.
Diferentemente do que muitos analistas imaginavam, a crise financeira mundial não resultou no colapso do capitalismo. Como o senhor vê a situação daqui para a frente? O que podemos esperar?
Boaventura de Sousa Santos – Essa situação mostra duas coisas: uma, que o pensamento crítico e de esquerda deveria fazer uma moratória de uma ideia que anda sempre presente, que é a crise final do capitalismo. Quantas crises finais já vimos, quantas foram anunciadas? Meus amigos Immanuel Wallerstein e David Harvey já estão falando em crise final. É evidente que haverá um fim, mas é muito difícil imaginá-lo agora. Hoje, o capitalismo não é um modo de produção, e sim um modo de civilização. Temos hábitos que não se imagina que possam existir fora da sociedade capitalista. Portanto, essa é uma luta por uma nova hegemonia, uma nova cultura. São necessárias transformações civilizacionais, e é por meio de uma luta de civilização que o capitalismo vai, eventualmente, cair. Mas não será já. Por exemplo, a crise financeira mostrou exatamente a capacidade de fôlego e de renovação interna que o capitalismo tem. Ele não tem princípios – só tem um, o lucro. Por isso que o capitalismo é, por essência, antidemocrático. Ele tolera a democracia enquanto ela for irrelevante para a proteção dos seus interesses. No momento em que ela ameaçar o desenvolvimento dos seus interesses, o capitalismo pode se transformar em anti-democrático.
Mas o fatos dos bancos terem recorrido ao Estado não muda o cenário do capitalismo mundial?
A partir de uma leitura marxista de Estado não há nenhuma surpresa. O Estado está aí para segurar o capital, e obviamente o Estado americano sustentou o capital financeiro. É aí que podemos discutir em que fase do capitalismo estamos. Nesse ponto eu concordo com os meus colegas. Acho que estamos numa fase particularmente perdedora do capitalismo. E, historicamente, uma certa derrocada do capitalismo acontece fundamentalmente nos momentos em que o capital financeiro começa a dominar o capital produtivo. Foi assim no declínio da Inglaterra, e hoje cremos que pode vir a dar-se a crise desse sistema. A palavra mais demonizada dos últimos tempos foi a “nacionalização”. No entanto, os homens de Wall Street não
hesitaram em aceitar a nacionalização da grande empresa de seguros A&G e de alguns bancos. Foram salvos exatamente pelo Estado. Ou seja, não há princípios, há resultados, há lucros. Essa crise não foi superada, pois, agora, foi aparentemente resolvida pelo capital financeiro. O presidente Obama declara que tem que haver uma regulação do capital financeiro porque a situação não é admissível para os cidadãos. Isso, mesmo numa democracia tão limitada como a norte-americana, em que tantos trilhões de dólares foram injetados no sistema financeiro para obter lucros fabulosos e se distribuir bônus e subsídios aos seus executivos, como faziam antes. Então, nada mudou. Essa é a primeira razão para mostrarmos que temos que ter uma certa prudência quando declararmos as fases finais do capitalismo. Temos que continuar a lutar, mas sabendo que esse é um sistema que tem uma capacidade histórica de se renovar. A segunda razão pela qual nada mudou é que a esquerda nas duas últimas décadas comprou as teses neoliberais. Aquela esquerda que tem a pretensão de chegar ao governo em muitos países – com exceção de alguns países do continente, como Equador, Bolívia ou Venezuela – acabou por aceitar que o mercado é um princípio de eficiência fundamental, que é melhor que o Estado, que a desregulação é importante, que a iniciativa privada é importante. Ou seja, a esquerda ficou desarmada.
Como o senhor vê o papel da China nessa nova conjuntura político-econô mica? Ela tem potencial para redefinir a geopolítica mundial?
Tem, sim, e estamos a falar de mais de um quinto da população mundial, com uma parcela significativa da humanidade. Esse país tem uma grande capacidade de ser uma força internacional. Ao contrário dos países ocidentais, injetou dinheiro na economia produtiva e, portanto, é o primeiro país a sair da crise. Com um crescimento que, calcula-se, será de 9% neste ano. Entre suas limitações está a disjunção entre o sistema político e econômico. É um sistema do lucro, do egoísmo, governado por um partido único autoritário que tem outras lógicas de funcionamento. Por quanto tempo essa disjunção vai existir? A China vai ser uma influência boa e má. Boa no sentido de moderar os instintos imperialistas dos Estados Unidos. Mas isso não é garantia que não possa vir a prejudicar outros interesses da humanidade.
Quando Barack Obama ganhou as eleições presidenciais, o senhor escreveu um artigo falando do valor simbólico da vitória. Passado um ano de governo, recém-completado, qual é o balanço que o senhor faz, tanto da política interna quanto externa?
Nesse artigo eu já mostrava alguma distância em relação ao Obama. É curioso que fui talvez uma das primeiras pessoas a escrever colunas internacionais que não “embandeiraram arco”, como a gente diz em Portugal, com a eleição de Obama. É claro que simbolicamente há um poder enorme, porque, não ele, mas sua mulher, é descendente de escravos, e, assim, entra na Casa Branca uma descendente dos escravos que construíram a mesma Casa Branca. E isso é de um valor simbólico notável, do mesmo modo que é chegar um operário ao governo no Brasil. Mas um ano depois, o que vemos é que, por mais inteligente que seja um homem – e ele é o melhor aluno de Harvard até hoje –, por mais que ele tenha uma capacidade retórica impressionante, quando chega ao poder fica totalmente enredado a esse poder. Ao fim desse primeiro ano de mandato só temos desilusões. De fato, não há nada de positivo. Quando da crise financeira, o Obama ainda era candidato e o vi na televisão rodeado pelos grandes homens do Goldman Sachs [um dos maiores bancos de investimento do mundo], que são hoje seus consultores. Portanto, ainda como candidato ele deu sinais de que não ia mudar a política do país. Mas foi pior do que aquilo que se esperava, na medida em que ele tinha um perfil de luta contra a guerra. Agora, o que se vê é que cada presidente dos Estados Unidos tem a sua guerra. O Obama também tem a sua. E esta, todavia, é quiçá mais perigosa que a guerra do Bush contra o Iraque. Porque é uma guerra no Afeganistão, onde historicamente ninguém ganha. E é uma guerra que se estende a um país que antes era amigo, o Paquistão, que está a ser desagregado devido à influencia dos EUA. Portanto, a desilusão no campo da guerra é total. A segunda desilusão é o comportamento em relação à América Latina. Não é desilusão porque eu não estava iludido, mas é evidente que muita gente ficou, porque Obama veio com um discurso completamente distinto, de estender a mão aos colegas latino-americanos. Mas a verdade é que a Quarta Frota continua e vieram as sete bases militares na Colômbia, que não têm nada a ver com a droga, nem sequer com a guerrilha. Elas estão orientadas basicamente para a biodiversidade desse continente, área estratégica para os Estados Unidos. Portanto, não pode ocorrer nada nesse continente que ponha em risco os seus interesses estratégicos ou o seu acesso aos recursos naturais.
Tatiana Merlino é jornalista
Para ler a entrevista completa e outras matérias confira a edição de março da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou clique aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.
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