terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ações afirmativas por uma sociedade mais justa

Entrevista publicada na edição nº 402, novembro de 2009, do Jornal M. Jovem

O termo ação afirmativa faz referência a um conjunto de políticas públicas destinadas a proteger minorias ou grupos sociais que tenham sido discriminados no passado. O desafio dessas políticas públicas é a retirada de barreiras, concretas ou não, que impedem a certos grupos o acesso pleno aos estudos, ao mercado de trabalho e aos direitos sociais e humanos. Ângela Guimarães, reafirma a importância das ações afirmativas como um caminho rumo à construção de um país onde as oportunidades realmente podem ser para todos.Ângela Guimarães ,membro do Conselho Nacional de Juventude e integrante da Unegro, Salvador, BA.Endereço eletrônico:
angelaguimaraes@ gmail.com
Mundo Jovem: A adoção de ações afirmativas é recente, no Brasil?Ângela Guimarães: Ações afirmativas existem no país pelo menos desde 1890, com a chegada da primeira leva de imigrantes europeus que tinham garantido emprego com trabalho assalariado, acesso à terra e escolas para seus filhos na sua língua original. Essa imigração europeia respondeu aos objetivos da elite política da época que, sob a justificativa de modernizar o país com mão-de-obra assalariada e adaptada ao padrão de produção industrial capitalista, implementou o projeto político de nação. Este projeto estava baseado no embranquecimento do país, que a esta altura contava com cerca de 42% da sua população composta por africanos e seus descendentes. Essa realidade durou até as primeiras décadas do século 20. Já na década de 1960, vigorou a chamada Lei do Boi, que reservava vagas nos cursos de agronomia e veterinária nas universidades para os filhos de fazendeiros. O irônico da situação é que não houve toda a gritaria e polêmica hoje observada em torno do debate sobre a inclusão da população negra nas universidades. Ainda há pouco tempo aprovamos na lei eleitoral a reserva de 30% das vagas para candidatas mulheres em todos os partidos, ainda que a maioria deles não respeite. Nesse sentido, vale ressaltar que não estamos inaugurando uma forma nova de fazer políticas públicas, antes direcionando a um expressivo contingente populacional que nunca foi beneficiário das políticas do Estado brasileiro.Com as ações afirmativas não se está descumprindo a Constituição, que diz serem todos iguais perante a lei?Ângela Guimarães: Sabemos que a igualdade de fato é muito difícil de ser construída. E qualquer observador desatento é capaz de atestar as enormes disparidades vivenciadas entre negros, indígenas e brancos nos espaços da vida social brasileira. Já existe uma larga produção de dados afirmando que, embora a nossa constituição assegure a igualdade entre todos os brasileiros, ter acesso igualitário aos mesmos direitos e oportunidades ainda é um sonho bastante distante de ser alcançado no Brasil. É com base nesses aprofundados estudos que reivindicamos ações afirmativas em todos os setores da vida social, por avaliarmos que a população negra foi preterida de ocupar estes espaços e oportunidades de direitos no país. Houve momentos no Brasil em que estava escrito na constituição a proibição de escravos e seus descendentes frequentarem a escola. Isso atrasou em mais de um século o acesso de crianças negras a escolas. O mesmo se passou com o acesso à universidade. Entendemos que a busca pela igualdade pressupõe a combinação de medidas emergenciais com medidas de
médio e longo prazos, com vistas à superação do fosso que separa os grupos populacionais no país. Ações afirmativas têm sua duração limitada a suprir a uma demanda emergencial, que não poderá esperar os efeitos das medidas de longo prazo.Então é o contexto histórico e social brasileiro que exige ações afirmativas?Ângela Guimarães: Exatamente isso! O pleito por ações afirmativas não surge como importação de ideias de realidades estranhas a nós, como querem fazer crer alguns. Antes, é fruto da análise pormenorizada sobre a forma de construção do Estado e nação brasileiros e do embate com a realidade de se viver num dos países com as maiores taxas de concentração de renda e riqueza do mundo. Essa situação ocasiona um dos maiores índices de desigualdade social do planeta. É também fruto da certeza inconteste de que os mais de 350 anos de escravidão deixaram marcas que o país ainda não conseguiu superar. Essa é uma realidade comum a toda a diáspora. O escravismo colonial e a colonização dos países africanos deixaram um legado perverso que até hoje é possível observar: fome, miséria, desemprego e subemprego e as dificuldades no acesso aos sistemas de saúde, educação, habitação.As ações afirmativas são paternalistas e/ou criam dependência?Ângela Guimarães: Essa é uma preocupação válida. Mas as experiências em curso nos permitem responder negativamente. Insisto que não podemos deslocar o pleito por ações afirmativas das medidas de caráter estrutural. Por exemplo, ao reivindicarmos cotas nas universidades não significa que deixamos de debater a necessidade da garantia da qualidade da educação básica pública que consiga abranger desde a Educação Infantil ao Ensino
Médio. Não significa que não queiramos ressignificar a escola como um verdadeiro espaço de preparação para a vida, aliando uma formação crítica a conteúdos relativos ao mundo do trabalho. Quando debatemos a inclusão da população negra no mercado de trabalho a partir da definição de cotas, não apenas questionamos o atual mercado de trabalho extremamente excludente, que discrimina com base na aparência física e no local de moradia. Pautamos também a sua superação através do estabelecimento de formas de produção e circulação de mercadorias menos poluentes e mais solidárias, a exemplo das cooperativas.Que resultados e conquistas já temos a partir das ações afirmativas?Ângela Guimarães: O primeiro resultado, sem dúvida, é abrir o debate sobre as desigualdades sociais existentes entre negros, indígenas e brancos no Brasil. Esse debate obriga a todo o país reconhecer que mitos como o da democracia racial não têm nenhuma validade concreta. O segundo resultado objetivo é facilmente observado nos dados obtidos pelo acompanhamento da trajetória acadêmica de estudantes cotistas. Elas são sempre iguais ou superiores àquelas de estudantes não-cotistas. Outro fator que sobressai é que não estamos beneficiando indivíduos isoladamente. Também não são suas famílias as maiores beneficiárias em que pese o fato de que estes estudantes serem as primeiras pessoas da história de suas famílias a cursarem o Ensino Superior mesmo depois de mais de um século da existência de universidades no país. O maior benefício dirige-se às perspectivas de desenvolvimento econômico e social do país, que passa a contar com mais profissionais melhor qualificados e comprometidos com as mudanças de que o país necessita. Pois a origem social deste segmento tem impactos no seu
compromisso com a melhoria do país.Se as ações afirmativas são emergenciais, o que virá depois?Ângela Guimarães: Realmente cabe destacar que todas as discussões visando à implementação das ações afirmativas ressaltam o limite de duração das mesmas. Não queremos ações afirmativas para a vida toda e, sim, por um período de tempo em que seja possível reequilibrar a presença de negros, indígenas e brancos em determinados espaços. A nossa luta é para que nunca mais tenhamos que brigar por cotas, reservas de vagas etc., porque a sociedade já estará estabelecida em outras bases que não as das assimetrias baseadas em pertencimentos de raça, gênero, geração ou classe. Ainda que não seja um consenso entre todos os grupos que militam em torno dos direitos da população negra, nós da União de Negros pela Igualdade (Unegro) acreditamos em outra ordem social, na qual o direito à vida esteja no centro das preocupações, em que não exista a exploração do ser humano pelos seus pares, independente do pertencimento de gênero, raça e classe.O que muda nas universidades?Ângela Guimarães: É um tanto exagerado creditar às ações afirmativas a responsabilidade pela mudança no conjunto da educação brasileira, construída historicamente sobre bases desiguais. Reafirmo a necessidade de combinar a demanda por ações afirmativas com a luta pela universalização da educação e melhoria da qualidade, condições de permanência, transformações curriculares, ressignificação da educação básica como um todo. Entretanto é enganoso o debate que diz que podemos prescindir das ações afirmativas e esperar que as mudanças positivas na educação pública incluam todo mundo, sem separações, pois isso já não vem acontecendo na prática. Não posso dizer
aos jovens de agora para esperarem, para adiarem seus projetos, que só seus netos e netas poderão acessar a universidade pública, pois é isso que estudos como os do IPEA nos apresentam. Mantidas intactas as atuais condições de acesso à educação superior, levaríamos cerca de cinco décadas para igualar os percentuais de brancos e negros no ensino superior.As ações afirmativas também superam a visão de que alguns são melhores que outros?Ângela Guimarães: Antes da ampliação dos debates sobre as ações afirmativas, o acesso ao Ensino Superior era creditado ao mérito dos estudantes. Quem estuda mais, merece a vaga. Porém com a ascensão do debate sobre a reserva de vagas para estudantes negros, indígenas e de escolas públicas trouxemos à tona que o real motivo que determina quem entra e quem não entra nas melhores universidades do país decorre de condições estruturais e não meramente subjetivas. Depende do acesso à boa formação escolar durante a educação básica (Educação Infantil ao Ensino Médio) e de um conjunto de condições que vão desde uma boa alimentação, bom repouso diário e em condições adequadas, o exercício de práticas esportivas e de lazer, convivência familiar e comunitária, dentre outros. Dessa forma, a teoria baseada no mérito cai por terra.

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